(Português) Copa do Mundo: ”o interesse público está sendo desvirtuado”. Entrevista especial com Thiago Hoshino

(Português)

 

19 de dezembro de 2011

O país do futebol prepara-se para ser o anfitrião da
Copa do Mundo 2014 e investe dinheiro público em obras de infraestrutura
sem submeter a verba utilizada ao debate coletivo, “a mecanismos de transparência
e controle social, ou mesmo às prioridades elencadas nos Planos Diretores
dos municípios”, alerta Thiago Hoshino na entrevista a seguir, concedida por e-mail
TCU revela que, “dos quasepara a IHU On-Line. De acordo com ele, o relatório
do Tribunal de Contas da União R$ 24 bilhões de investimentos federais
divulgados, apenas 1,4% correspondeà parcela da iniciativa privada”.

 

Em sua avaliação, os projetos e os investimentos destinados à vigésima
edição da Copa do Mundo não “dialogam com as demandas sociais locais, mas
respondem unicamente a exigências de infraestrutura e maquiagem urbana
de organismos como a FIFA, assumidas de forma unilateral pelos gestores
nas três esferas da federação”.

Integrante do
Comitê Popular da Copa de CuritibaHoshino participou da elaboração do 
Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa – Megaeventos
e Violações de Direitos Humanos no Brasil
,
e afirma que
as obras da Copa estão violando os direitos humanos e representam
um “retrocesso na garantia dos direitos coletivos e sociais fundamentais”.
“Nesse contexto, ganham destaque as violações do direito à moradia digna,
com previsão de mais de 150 mil pessoas compulsoriamente deslocadas devido
a obras e intervenções urbanas diversas, as quais se justificam 
ao menos ideologicamente  pela preparação desses grandes eventos”, relata.

Hoshino também comenta a Lei Geral da Copa e enfatiza que ela “interessa apenas como
caso de estudo teratológico, pois consiste numa verdadeira aberração jurídica”.

Thiago Hoshino é mestrando do Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade Federal do Paraná UFPR e assessor jurídico
da Organização Terra de Direitos. A entrevista a seguir foi realizada em
parceria com os colegas do 
Centro de Pesquisa e Apoio ao Trabalhador – Cepat
.

Confira a entrevista.

IHU On-Line  A Articulação Nacional de Comitês Populares da Copa
acaba de lançar o dossiê intitulado Megaeventos e Violações de Direitos
Humanos no Brasil. Dentre as várias denúncias, qual delas é mais reincidente?

Thiago Hoshino A recepção dos megaeventos esportivos no Brasil, assim
como ocorreu nas edições anteriores da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos,
representa um processo de profunda reconfiguração do território com vistas
à expansão de novas fronteiras de acumulação do capital. A espetacularização
das cidades e sua transformação em mercadoria de consumo para poucos exige
a intensificação da
segregação étnico-social e produz uma espécie de “estado de exceção”
que desrespeita e mesmo desconstitui garantias estabelecidas em nossa legislação
interna, produto que são de lutas e conquistas históricas.

Nesse contexto, ganham destaque as violações do direito à moradia digna,
com previsão de mais de 150 mil pessoas compulsoriamente deslocadas devido
a obras e intervenções urbanas diversas, as quais se justificam  ao menos ideologicamente  pela preparação desses grandes eventos. Mas os problemas
não se resumem a isso: são reiterados os casos de precarização das condições
de trabalho,
criminalização de trabalhadores informais e da população em situação
de rua, falta de participação popular e de acesso às informações, degradação
do meio ambiente, hipermilitarização e flexibilização do planejamento urbano.
Vários exemplos disso são enfocados pelo dossiê. A elitização do próprio
esporte é outra grave consequência desse modelo, obviamente.

IHU On-Line  O governo afirma que a Copa será um instrumento de
ganhos para o conjunto das cidades nas áreas de transporte coletivo, urbanização,
moradia, etc. Isso tem se verificado?

Thiago Hoshino Na análise dos movimentos sociais,
estamos mais próximos do oposto: um retrocesso na garantia de direitos
coletivos e sociais fundamentais. Ações concentradas em áreas já bem qualificadas
e ameaças de privatização fazem parte dos fatores negativos da equação.
Há uma proposta de passar o próprio Maracanã para a iniciativa privada, depois de receber investimentos
públicos. Transporte público? Vias inteiras estão sendo concebidas para
a mobilidade de automóveis individuais ou para tímidos alguns modais coletivos
que não integram a cidade, mas conectam ilhas de riqueza entre si. O caso
do Veículo Leve Sobre Trilhos em Fortaleza é emblemático. Seu traçado é incoerente, desviando
de bairros de classe média, mas avançando diretamente sobre comunidades
carentes e ocupações irregulares. Urbanização?  Parques, áreas de
preservação permanente, espaços públicos estão sendo engolidos sem pena
e sem Estudo de Impacto Ambiental EIARelatório de Impacto Ambiental  RIMA pelas obras.

Moradia? As remoções em massa falam por si. Segurança pública? A marca
de nossa política criminal repressora são cordões de isolamento em pontos
estratégicos, permitindo o trânsito livre de turistas e restringindo acesso
ao povo. Literalmente, para inglês ver. A
Copa do Mundo é como uma festa que darão na sua sala, porém você terá
de sair de casa para deixar a visita à vontade. Afinal, que “legado” é
esse de que estamos falando?

IHU On-Line  Há espaço para participação popular no debate sobre
a preparação da Copa ou a organização do evento é refratária à participação
das organizações sociais?  As críticas têm sido acolhidas, há correção
e revisão de projetos ou a organização da Copa se faz de forma autoritária?

Thiago Hoshino Infelizmente, não. Não há qualquer
abertura para a participação popular. As prioridades eleitas não passam
por discussão prévia com a coletividade. Segmentos sociais e comunidades
atingidos não são consultados, nem há o que se chama 
Estudos de Impacto de Vizinhança
. E mesmo que houvesse, como ter uma incidência qualificada se
não são publicizadas as informações? A Matriz de Responsabilidades

não contempla todos os projetos
que serão executados e, muitas vezes, encontra-se desatualizada.
Poucas são as audiências públicas realizadas e, quase sempre, meramente
pró-forma. Os espaços tradicionais de gestão democrática, como os Conselhos
da Cidade ou de Política Urbana, foram abandonados ou aparelhados. O padrão
é o autoritarismo e o discurso tecnocrático, além do argumento dos “prazos”
e do “fato consumado”. Isso enseja absurdos, como notificações para desocupação
de áreas com prazo de “zero dias”, no Rio de Janeiro.

IHU On-Line  O fato de o futebol ser uma paixão nacional dificulta
a divulgação das críticas e mesmo a participação popular nos protestos?

Thiago Hoshino Nas mobilizações e no trabalho de
base que temos realizado nos Comitês Populares da Copa, ativos nas 12 cidades-sede,
vemos que, longe do que se imagina, o amor do brasileiro pelo futebol não
impede que se constitua um espaço de reflexão crítica sobre o conjunto
de arbitrariedades que acompanha os megaeventos. Ao contrário, o interesse
geral pelo tema, o descrédito em que caíram as instituições promotoras
dos jogos e os nítidos impactos sofridos pelos próprios torcedores em seus
direitos  que vão do encarecimento dos ingressos até a descaracterização
do patrimônio histórico-cultural esportivo  contribuem para gerar um sentimento de indignação compartilhado
e a politização desse debate.

IHU On-Line  A Copa do Mundo no Brasil é um negócio privado bancado
com recursos públicos? Qual a percentagem do investimento público? Os recursos
do BNDES são a fundo perdido?

Thiago Hoshino Segundo o relatório do 
Tribunal de Contas da União  TCU
de julho deste ano, dos quase R$ 24 bilhões de investimentos
federais divulgados, apenas 1,4% corresponde à parcela da iniciativa privada.
Mais de 50% dos recursos advêm de linhas de financiamento do 
BNDES
ou da Caixa Econômica Federal. Ainda que se tente caracterizar essas
operações como simples empréstimos, é preciso lembrar que elas

são subsidiadas pelo Estado
, isto é, trata-se de concessões a juros mais baixos do que os normalmente
praticados. Além disso, não raro as garantias oferecidas para acessá-las
são também títulos públicos, numa arriscada engenharia financeira. ? o
que tem ocorrido com os Certificados de Potencial Adicional de Construção oferecidos
pelo município de Curitiba aoClube Atlético Paranaense, que, por sua vez, poderá fornecê-los
ao Fundo de Desenvolvimento Econômico do estado para a reforma do estádio
Joaquim Américo Guimarães, ou seja, uma obra particular.

O suposto “legado” da Copa do Mundo e das Olimpíadas, portanto, está sendo
construído majoritariamente com dinheiro público, em ações que já são ou
deveriam ser de responsabilidade do Estado. E há estudos que apontam orçamentos
ainda mais arrojados, ultrapassando R$ 100 bilhões. Contudo, o destino
de toda essa verba não está submetido ao debate coletivo, a mecanismos
de transparência e controle social, ou mesmo às prioridades elencadas nos
Planos Diretores dos municípios. Observamos uma completa inversão de valores,
pois esses projetos tampouco dialogam com as demandas sociais locais, mas
respondem unicamente a exigências de infraestrutura e maquiagem urbana
de organismos como a Fifa, assumidas de forma unilateral pelos gestores nas três esferas
da federação. Tudo isso avalizado por alterações nas regras de responsabilidade
fiscal, como a Resolução n. 3.831/2010 do Conselho Monetário Nacional,
que ampliou os limites de endividamento do setor público para obras da
Copa.

IHU On-Line  A partir da perspectiva econômica, já se pode afirmar
quem serão os grandes ganhadores com a Copa do Mundo no Brasil?

Thiago Hoshino Existe uma aliança transescalar forjada
entre interesses políticos, tanto do Brasil por projeção internacional
como o das cidades-sede, por competitividade e capital simbólico, assim
como corporativos da FIFA, do Comitê Olímpico Internacional e
seus parceiros em geral; da indústria cultural; de empresas do setor construtivo;
de agentes de especulação imobiliária, etc. As grandes empreiteiras, por
exemplo, serão fartamente beneficiadas por projetos megalomaníacos e despropositados
em todo o país. Lembrando ainda que, à margem do procedimento licitatório
convencional, o Regime de Diferenciado de Contratações Públicas 
RDC, aprovado para esses empreendimentos, contém uma série
de incertezas, contradições e brechas, já questionadas pelo próprio Ministério
Público Federal em Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Mesmo numa perspectiva puramente economicista, não há razões para se comemorar:
estamos apostando muito alto numa expectativa de aquecimento pouco provável
de se concretizar. A África do Sul é prova dessa fantasia desfeita e a crise
que a Grécia vive hoje nos remete aos gastos fenomenais dos 
Jogos Olímpicos de Atenas
. De qualquer modo, o importante é frisar que, quaisquer que
sejam os ônus e bônus dos megaeventos esportivos, eles são desigualmente
distribuídos. Os
ganhadores são poucos. Os perdedores são todo o povo.

IHU On-Line  Há risco de grandes estádios ficarem subutilizados
após a Copa? Quais seriam essas praças esportivas?

Thiago Hoshino Não apenas os estádios de futebol
tendem a tornar-se enormes elefantes brancos. Inúmeros outros complexos
esportivos e até mesmo obras de mobilidade urbana têm sido pensados e implementados
sem que se levem em consideração as realidades locais, o que certamente
produzirá equipamentos que serão abandonados ou subutilizados futuramente.
Seguindo o modelo de Pequim, que já começou a demolir parte das estruturas de 2008,
a cada dia surgem relatos de projetos absolutamente desnecessários ou superfaturados.
As recentes denúncias sobre o Veículo Leve sobre Trilhos  VLT de Cuiabá confirmam essa preocupação. Ainda, conforme parecer
da Brunoro Sport Business, “arenas” coma a de Manaus, Brasília e
Natal demorariam, mantendo seu nível atual de rentabilidade, 198, 167 e
155 anos para serem pagas, respectivamente.

IHU On-Line  Come está a relação entre o governo federal, a Confederação
Brasileira de Futebol e a Federação Internacional de Futebol? Quem mais
ganhou na queda de braço da Lei Geral da Copa?

Thiago Hoshino Há, é verdade, alguns pontos de divergência.
Mas são questões localizadas.
governo federal alega que assumiu compromissos desde o momento
da candidatura do país, que agora devem ser honrados. Isso significa, na
prática, exigir que mudemos nossas leis para atender a contratos privados.
Se é assim, para que ter Poder Legislativo na República? O conceito de
“interesse público” está sendo completamente desvirtuado. ? trágico notar
que a queda de braço está se tornando progressivamente um caloroso aperto
de mão.

IHU On-Line  O que há de interessante e de equivocado na Lei Geral
da Copa?

Thiago Hoshino A
Lei Geral interessa apenas como caso de estudo teratológico, pois
consiste numa verdadeira aberração jurídica. Na esteira de outras medidas
similares, como a Lei do Ato Olímpico, n. 12.035/09, trata-se de um
contrassenso em nossa legislação, com dispositivos flagrantemente inconstitucionais.
No começo do mês, aArticulação Nacional dos Comitês Populares da Copa lançou
também uma nota pública de repúdio e questionamento ao Projeto de Lei n.
2330/2011. Entre os tópicos mais problemáticos do texto original estavam
os abusivos direitos de “exclusividade comercial” da FIFA, o desrespeito ao Código do Consumidor e ao Estatuto do Idoso, a liberação incondicional de vistos de entrada
a convidados e clientes da Federação, os crimes temporários criados
ad hoc, as justiças especiais para o evento e a
responsabilidade objetiva da União por danos e prejuízos da entidade.
Nas alterações que serão debatidas terça-feira próxima (20 de dezembro)
na Comissão Especial constituída na Câmara dos Deputados, pouco melhorou
até o momento. As justiças especiais tornaram-se um procedimento administrativo
junto à Advocacia Geral da União  AGU, uma porcentagem pequena
dos ingressos será destinado à “categoria D”, foi inserida a liberação
de venda e consumo de bebidas alcoólicas nos estádios e até se propôs alterar
o calendário escolar para não coincidir com os jogos. Vamos aceitar esse
cavalo de troia?

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