Relatora da ONU denuncia ilegalidades em remoções da Copa e Olimpíadas

Miguel Conde para O Globo

Rio de Janeiro, 06 de agosto de 2011


Desde que começou a divulgar denúncias de irregularidades nos processos de remoção para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, a urbanista Raquel Rolnik, relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada, tem ouvido que está “atrapalhando” a organização dos dois eventos. “É aí que mora o perigo”, observa nesta entrevista por telefone ao GLOBO, comentando a “blindagem” criada pelo entusiasmo com as duas competições. O desrespeito à legislação brasileira e internacional é um padrão nas ações de remoção que têm sido realizadas, afirma, a começar pela completa falta de informações sobre os processos. Na ausência de dados públicos, Rolnik tem acompanhado denúncias feitas por ONGs e associações de moradores e visitado comunidades que estão sendo removidas, reunindo informações que podem ser lidas em seu blog

A senhora tem chamado atenção para denúncias de remoções ilegais para a realização dos projetos da Copa do Mundo, em 12 cidades brasileiras, e das Olimpíadas, no Rio de Janeiro. Onde estão os maiores problemas?

RAQUEL ROLNIK:As denúncias vêm de todas as cidades. Não é algo restrito a uma prefeitura, mas um padrão. A única cidade sobre a qual não recebi, até o momento, nenhuma denúncia é Cuiabá, o que pode ser uma boa ou uma má notícia — pois é possível que esse silêncio não indique uma falta de ações ilegais, mas antes uma ausência de reações ou mobilizações no sentido de enfrentá-las.

Quais são as principais ilegalidades denunciadas?

A primeira violação é a total falta de informações sobre as remoções. Você não encontra em lugar nenhum onde estão anunciados os projetos, nem um dado sobre quantas pessoas serão removidas, para onde elas irão etc. Por isso não tenho como saber se as denúncias que recebi representam 10%, 20% ou a parcela que seja do total, porque não sabemos qual é o total. A primeira coisa que deveria ser feita é um plano claro do legado socioambiental desses eventos, onde fique claro qual é a política em relação às remoções. Esse é o momento de se estabelecer um padrão nacional que seja debatido pelo governo, comunidades e organizações civis.

Já não existem marcos legais que determinem como isso dever ser feito?

Além da Constituição e do Estatuto da Cidade, existem acordos internacionais assinados e ratificados pelo Brasil que estabelecem sob que condições e de que maneira uma remoção pode ser realizada, e essas leis estão sendo desrespeitadas. Por isso seria importante haver um padrão que fosse incorporado aos projetos da Copa e das Olimpíadas.

Que outras violações têm sido denunciadas?

As populações atingidas têm direito de receber informações sobre o projeto com antecedência, inclusive de participar da discussão do projeto e propor alternativas. Se afinal decidir-se de fato pela remoção, apresentando justificativas para tanto, há duas formas de reparação possíveis: a compensação financeira, ou então o reassentamento num local apropriado. As denúncias que recebemos dão conta de que em muitos casos nenhuma dessas condições tem sido respeitada. Moradores têm sido intimidados para não criar problemas, sofrendo ameaças, seguranças particulares participam das remoções, os reassentamentos são feitos em locais sem equipamentos e serviços adequados e tenho notícia de compensações financeiras de valores aviltantes: R$ 3 mil, R$ 5 mil, R$10 mil, totalmente insuficientes para garantir uma moradia digna. Uma determinação básica numa situação de remoção é que a pessoa não pode sair do processo pior do que estava no início dele. Mas é isso que está acontecendo em muitos casos.

A maior parte das pessoas removidas vive em comunidades pobres, nem sempre com a posse da terra legalizada. Muitas vezes, ouve-se o argumento de que as pessoas removidas não podem então queixar-se da remoção, pois elas sim é que estariam “fora da lei”. O que a senhora acha desse discurso?

Essa visão é muito equivocada. Ela poderia fazer algum sentido caso os assentamentos informais no Brasil tivessem sido produto do livre arbítrio das pessoas que moram ali, se elas tivessem plenas condições de morar de outra maneira, mas tivessem optado por esse tipo de moradia. Nós sabemos muito bem que não é esse o caso. Nossa história é de uma exclusão socioterritorial dos pobres, que não tiveram acesso a terra e moradia no mercado formal e tiveram que buscar várias soluções de autoprodução de seu habitat. A política urbana brasileira jamais disponibilizou moradia adequada para os trabalhadores e a população de menor renda: esse é o ponto de partida. A legislação brasileira já reconheceu estes direitos na Constituição e em várias leis federais que regularizam a moradia de quem não teve outra opção senão a informalidade.

Por outro lado, também há padrões que devem ser respeitados neste reconhecimento, não?

Claro, a legislação brasileira estabelece as condições para o reconhecimento dos assentamentos irregulares: ocupações que não foram questionadas, há mais de 5 anos, para moradia de quem não tem outra moradia, entre outros. Mas mesmo comunidades que já obtiveram a concessão de uso do terreno na mão, ou seja, que já passaram por um processo de reconhecimento formal, como a Vila Autódromo, no Rio, estão sendo removidas de maneira que contraria a legislação brasileira e internacional. O direito à moradia não se refere à propriedade de uma casa, mas antes disso é um direito humano, como elemento fundamental de um padrão de vida digno, o que não se resume a quatro paredes e um telhado. Direito à moradia inclui a possibilidade, a partir da moradia, de acesso a meios de sobrevivência, ao trabalho, a equipamentos de saúde, educação, ao lazer e à cultura, às oportunidades de desenvolvimento humano. As pessoas, no entanto, estão sendo removidas para lugares distantes, sem cidade, um filme que nós já vimos.

A euforia em torno da Copa e das Olimpíadas tem contribuído para que essas denúncias sejam deixadas de lado?

Esses eventos têm uma importância simbólica, têm um grande apelo nacionalista, mobilizam sentimentos que criam uma espécie de blindagem, como se para fazer isso acontecer valesse tudo. Muitas vezes ouço comentários como se eu fosse contra o Brasil, estivesse atrapalhando. É aí que mora o perigo, neste estabelecimento do que meu colega Carlos Vainer chama de “estado de exceção”, em que as leis são suspensas e parte-se para o vale tudo. A gente sabe o que significa no Brasil o vale tudo. Mas há um histórico internacional de ilegalidades associadas a esses megaeventos esportivos, em relação à questão da moradia, aos direitos trabalhistas, à população de rua, aos vendedores ambulantes, entre outros.

Há também um discurso sobre o desenvolvimento que tende a tomar os direitos humanos e os problemas ambientais como entrave ao crescimento econômico.

Existe uma dificuldade de entender que desenvolvimento não é só acumular riquezas e aumentar o PIB, mas fazer isso de forma a promover uma sociedade mais justa e um Estado que respeite os cidadãos. E isso tampouco se mede apenas pelo aumento de poder de consumo dos trabalhadores. O verdadeiro desenvolvimento incorpora essas dimensões, não cria uma contradição entre elas. Isso passaria por uma revisão da própria maneira como o meio ambiente e os direitos humanos são pensados dentro dos projetos do país. Hoje a proteção ambiental, do patrimônio histórico e dos direitos humanos é vista como uma espécie de burocracia setorizada, que participa das obras apenas para fazer exigências, impor condições, “atrapalhar” , “encarecer”, quando eles deveriam estar presentes no projeto desde o início. No Brasil, não existe um processo de planejamento do território a partir de uma visão sócio-ambiental — ainda não nos livramos da lógica dos “projetos” e das políticas ad hoc. E assim reproduzimos a lógica das grandes obras que vão construindo favelas ao seu redor e das favelas que vão sendo removidas para poder dar lugar a grandes obras…

Fonte: O Globo


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *