Torres de Santa Teresa: o direito à moradia e o acesso à própria casa

“Foi naquele lá, olha. Naquele. Tá vendo?” Eles apontavam para o apartamento do 7o andar, onde houve o incêndio. A mancha preta ao redor de uma janela evidenciava o ocorrido. Mais abaixo, logo ali no 4o, Anastasia, Aécio e Itamar sorriam amarelo.

A chegada de Raquel Rolnik, Relatora Especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada, envolvia grandes expectativas. Pequenos grupos se formavam enquanto a polícia marcava, ostensiva, o território. O incêndio queimou um apartamento do edifício de número 100 da rua Clorita, nas chamadas Torres Gêmeas, no Bairro Santa Tereza, em Belo Horizonte. Ocorreu há cerca de um mês. Desde então, os mais de 300 moradores estão vivendo em abrigos, barracas, ou em casas de familiares e amigos. Aguardam, em sua ansiedade passiva, um laudo da prefeitura, enquanto policiais do batalhão de choque da polícia militar, munidos de metralhadoras e outras armas menores, guardam as entradas do prédio.

As Torres Gêmeas foram ocupadas em 1995 depois de vendidas mas abandonadas pela construtora.1 Em 2004, a Associação de moradores foi habilitada no Edital do Programa de Crédito Solidário da CAIXA, gerido pelo Ministério das Cidades. O projeto previa financiamento dos custos de desapropriação e da reforma do prédio. O custo por família da reforma seria de menos de 20 mil reais – consideravelmente inferior ao valor médio gasto na construção de habitações populares pela prefeitura de Belo Horizonte. A reforma ainda minimizaria impactos sociais, já que os moradores poderiam permanecer na região onde trabalham e onde estudam seus filhos.

Os projetos não foram levados adiante. Os moradores continuaram ali. Como é de praxe, com poucas garantias e nenhum apoio dos órgãos públicos que existem, teoricamente, para protegê-los. Até o momento, a prefeitura atuou pelo descaso. “Mas agora, já viu né? Tem a copa do Mundo”, e “Agora construíram o shopping”, afirmam os moradores, conscientes (e conformados) dos interesses que movem a política local e de seu papel num jogo social histórico: obedecer e agradecer.

O incêndio foi a ocasião que muitos esperavam para despejar as famílias. O shopping tem sua inauguração prevista para os próximos dias. A copa do mundo, no que diz respeito à especulação imobiliária, já começou, com vencedores e perdedores. Por enquanto, só perdedores. Os moradores das torres muito dificilmente conseguirão permanecer ali, ou até mesmo nas proximidades. As Torres Gêmeas são o exemplo concreto de um modelo político-social que persevera, robusto. Interesses econômicos são dissimulados em discursos de segurança e violência. Ideais de limpeza higienista e progresso prevalecem sobre o civismo mais elementar.

A intolerância aniquila as possibilidades de compartilharmos a cidade. Continuamos a patinar no atraso.

Márcio Lacerda, prefeito de Belo Horizonte, no entanto, entrará para a história como o prefeito que “resolveu o problema” das torres. Os atuais moradores serão facilmente esquecidos – assim como os Piores de Belô e os muitos outros que estiverem no caminho modernizante que a prefeitura vem abrindo com ímpeto autoritário de trator.

Rolnik relatou a posição impassível do prefeito e re-afirmou aos moradores seus direitos. Mas não trouxe novidades:

“(…) Vim aqui fazer essa visita, vim a Belo Horizonte, não como relatora, [mas] porque fui convidada a fazer uma palestra na universidade. Mas o pessoal me convidou para conhecer as ocupações em Belo Horizonte, visitar Dandara, as Torres Gêmeas, ouvir e ver como está a situação. Aí eu falei, quero sim.

Pedi também, antes de vir para cá, pedi para conversar com o prefeito de Belo Horizonte porque queria ouvir, eu, da boca dele, o que ele tinha a dizer sobre a situação. Eu sabia que vinha aqui, então eu queria ouvir também, porque é uma postura que a gente tem, de sempre ouvir os vários lados, não sair com a impressão só de um lado. Então fui ouvir o prefeito e o que ele tem a dizer sobre essa situação que vocês estão vivendo; e vim fazer esta visita.

Estou absolutamente chocada e preocupada com que estou vendo aqui, estou vendo na cara de todo mundo que está aqui olhando para mim uma angustia muito grande, uma angustia de não saber o que vai acontecer, como vai ser amanhã, vou ter ou não onde morar e onde será isso, vou poder ficar aqui, não vou poder ficar. E acho que esta angustia que estou vendo aqui e esta situação é uma situação que contraria e que nega a moradia como um direito humano, porque não é certo, não é justo, que as pessoas vivam em uma situação de angustia e de precariedade como vocês estão vivendo aqui. Infelizmente minha expectativa quando fui conversar com o prefeito era de poder depois vir aqui e lá no Dandara tentar dar uma boa notícia. Falei bom, quem sabe eu, como relatora da ONU, [vou] lá conversar com o prefeito, e depois eu vou lá, vou conversar com o pessoal, e vou poder oferecer alguma esperança, alguma saída, alguma solução.

Infelizmente não foi o que eu ouvi hoje da boca do prefeito.

O prefeito não apresentou, para mim pelo menos, nenhuma proposta, de saída, de solução, para a situação que está sendo vivida aqui. Ouvi da boca dele que a prefeitura considera que aqui, isso não pode ser transformado em uma política de moradia de reforma com crédito solidário, etc. Essa é a posição do prefeito, essa é a posição dele.

Mas de qualquer maneira eu disse a ele, e vou repetir aqui o que disse a ele: que eu tenho uma absoluta convicção e certeza, seja reformando este prédio neste lugar, ou seja em outro lugar, não é possível, não é possível, que tenha qualquer tipo de despejo ou de desocupação sem que uma alternativa seja apresentada, e alternativa tem que ser uma alternativa de moradia digna, duradoura, não provisória.

E nesse sentido, o abrigo não é uma alternativa, porque o abrigo é uma situação provisória, não é uma situação de moradia, é uma situação de apoio, é uma situação de emergência, de quem está na rua, e num dia frio precisa ter um teto, precisa ter um cobertor, precisa ter um banho. Abrigo não é uma situação para uma família, não é uma situação permanente, não é uma solução de moradia realmente permanente. Outras soluções tem que acontecer. Não necessariamente (eu quero deixar isso muito claro, porque essa é minha posição), não necessariamente cada família ser dona de uma casa ou um apartamento aqui, essa não é a única solução. Uma política de aluguel, mas uma política de aluguel firme, segura, em que a própria prefeitura encontra as casas para serem alugadas, negocia, acerta, paga esses alugueis – e não uma situação, como já foi denunciado para mim, de que [a prefeitura] paga durante 2 meses, 3 meses, e depois não paga mais e as famílias ficam em uma situação muito vulnerável. Eu quis dizer é que uma política de subsídio ao aluguel e apoio ao aluguel pode ser uma política de apoio à moradia digna, mas ela tem que ser permanente, a prefeitura tem que entrar no meio, tem que intermediar, tem que encontrar os apartamentos e as casas junto com as pessoas, tem que garantir que isso é uma situação permanente, que as pessoas não sairão de lá. Fora isso, outras formas de moradia também são possíveis.

Então eu acredito que a luta aqui, evidentemente, as pessoas que estão nos apartamentos, que investiram nestes apartamentos, querem e devem lutar pela sua permanência aqui e pela reforma, por um projeto que consiga colocar essa perspectiva. Mas principalmente: essa pode ser uma alternativa, mas se essa não for uma alternativa, não pode acontecer uma situação sem alternativa, simplesmente falando ‘tchau! Isso aqui não pode mais ficar aqui…não tem mais onde ficar’.

O que eu como relatora da ONU posso fazer nessa situação? Na verdade muito pouco, o que eu posso fazer é que eu já estou fazendo e continuarei fazendo. É primeiro relatar o que eu vi, relatar o que eu vi para todas as autoridades, para o município, para o estado, para o governo federal, para a imprensa, para o conselho de direitos humanos da ONU, mostrando aquilo que eu vi aqui, e dessa forma, de uma forma solidária a vocês, procurar apoiar vocês nessa luta que vocês estão fazendo para ter uma solução digna aqui.

Infelizmente eu adoraria que a ONU pudesse intervir, que a ONU pudesse chegar aqui e falar não! Aqui está a solução, façam! E mandar o governador, o prefeito, o presidente fazer. Mas esse poder eu não tenho, não tenho como fazer isso, mas o que eu me comprometo a fazer, a partir desta visita, é poder claramente relatar tudo isso que estou vendo aqui e apoiar vocês solidariamente, no sentido de que uma solução duradoura e digna possa ser posta para vocês o mais rápido possível, para impedir que esta situação de angustia, de insegurança, se prolongue indefinidamente, porque isso é uma situação que não dá para se prolongar indefinidamente.

Acho que vocês tem que saber que apesar dessa posição de vulnerabilidade, a moradia é um direito. Que a moradia adequada é um direito de todos que estão aqui presentes e que portanto a luta que vocês estão fazendo aqui, e a resistência que vocês estão fazendo aqui, é absolutamente legítima. E é uma luta, uma organização, para defender um direito. É isso que eu gostaria de trazer. Esta mensagem, aqui, para vocês neste dia de hoje, e relatar também aquilo que eu ouvi no dia de hoje da boca da autoridade máxima daqui da cidade de Belo Horizonte que é o prefeito, que infelizmente não me pareceu nem um pouco disposto a entrar num processo de negociação e apoio às famílias que estão aqui, pelo menos para que o prédio permaneça, seja reformado, organizado, etc. Mas acho que nem porque essa posição foi expressa, essa pode não ser uma posição majoritária, essa pode ser uma posição que também pode se transformar diante da organização, da luta de vocês, da solidariedade, da rede que vai se formando entorno desta situação. Agradeço a vocês por esta visita. Agradeço a vocês por terem me recebido aqui, nesta situação – que também não é fácil expor e compartilhar com os outros. Espero pelo menos que as possibilidades de eu ecoar as vozes de vocês possa ter algum efeito, ser de alguma ajuda, de alguma forma. Muito obrigada.” 2

Rolnik se foi depois de uma espera forçada: motoristas de taxi se recusavam a dirigir até o local. Os grupos se dispersaram. Só nossos políticos vitoriosos continuavam sorrindo, agigantados, no 4º andar.

Notas
1 Para saber mais sobre a história das Torres de Santa Teresa: http://colaterais.org/project/torres-de-santa-tereza
2 Veja fala completa em: www.youtube.com/torresgemeasorg

Fonte: Fernanda Regaldo e Marcelo XY

 

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