O vício britânico pela habitação – a hora de reabilitação?

05 de março de 2014

A política no Reino Unido começa e termina com a questão da habitação. É o que mostra nesta análise Matthew Richmond, pesquisador colaborador do INCT Observatório das Metrópoles. Questões como o desempenho econômico, a imigração, os gastos públicos e a relação do Reino Unido com a União Europeia tendem a dominar as manchetes. No entanto, mais que qualquer outro assunto é a habitação que sustenta a estrutura econômica do país e, por extensão, seu status quo político. O preocupante, nesse caso, é que isso se faz de forma desigual e insustentável.

O vicio Britânico pela habitação – a hora de reabilitação?

Por Matthew Richmond

A política no Reino Unido começa e termina com a questão da habitação. Questões como o desempenho econômico, a imigração, os gastos públicos (ou melhor dito a falta dele), e relação do Reino Unido com a União Europeia (e com ele mesmo!) tendem a dominar as manchetes. No entanto, mais que qualquer outro assunto é a habitação que sustenta a estrutura econômica do país e, por extensão, seu status quo político. O preocupante é que isso se faz de uma forma altamente desigual, instável e, como veremos, claramente insustentável.

Uma nação de proprietários?

O Reino Unido gosta de se ver como uma “nação de proprietários”, mas esta imagem é muito enganadora. Segundo o censo de 2011, 64% dos domicílios britânicos são caracterizados como casa própria (ou quitado ou em aquisição). Os outros 36%, por sua vez, são divididos igualmente entre a habitação social (habitação alugada diretamente do estado ou de um ‘senhorio social’ ( sem fins lucrativos) e do setor de locação privada (private rental sector). A taxa de casa própria (homeownership rate) cresceu de forma constante durante o período pós-guerra, enquanto o país se enriqueceu e a suburbanização fez a habitação acessível para uma classe média crescente. No entanto, com a construção de habitação social em grande escala os municípios tornaram-se os proprietários primários do país. Ao mesmo tempo, o setor de locação privada encolheu dramaticamente.

No entanto, este quadro tem mudado drasticamente nas últimas três décadas devido a duas mudanças iniciadas pelo governo de Margaret Thatcher (1979-1990). Primeiro, a habitação social começou a declinar. O primeiro mandato de Margaret Thatcher foi politicamente precário. (Foi só depois da sua reeleição em 1983 – no contexto de uma explosão de patriotismo depois da Guerra das Malvinas e uma cisão desastrosa da esquerda – que ela pôde perseguir agressivamente sua agenda neoliberal radical). Nesses primeiros anos a medida mais popular do governo, consagrado na Housing Act (Lei de Habitação) de 1980, foi a política “Right to Buy” (“Direito a Comprar”), que permitiu aos inquilinos da habitação social comprarem, e eventualmente venderem, suas casas a um preço favorável. O impacto foi profundo. Após um pico de 31% dos domicílios em habitação social em 1981, o nível caiu para 18% hoje (e com muito mais deles com ‘senhorios sociais’ do que com o estado). Embora tenha sido projetado para promover a casa própria, uma grande proporção dos apartamentos comprados em “Right to Buy” acabaram sendo comprados por proprietários privados que agora os alugam para muito mais do que as rendas de habitação social.

A segunda mudança que começou sob Thatcher (mas que foi entusiasticamente promovido pelos governos subseqüentes também) foi a financeirização da habitação e o aumento dos preços proprietários. Em 1986 a desregulação do setor financeiro (conhecido como o “big bang”) precipitou uma financeirização progressiva da economia britânica e os bancos e outras instituições financeiras começaram usar as moradias como um destino seguro e rentável para a especulação através da prestação de hipotecas (mortgage lending). Esta rentabilidade foi amparada pelo fracasso de sucessivos governos durante 30 anos para promover os níveis de construção de moradias proporcional ao crescimento da população. Mais dinheiro fluiu para uma oferta estática de habitação, levando os preços imobiliários a subir inexoravelmente.

Este problema agravou-se no novo milênio quando os salários reais começaram a estagnar. O preço médio de uma casa subiu de £100 mil (R$391 mil com a taxa de câmbio atual) em 2000 para £250 mil (R$977 mil) em 2010. O rácio dos preços da habitação de salários cresceu de seis para um a dez para um. Como resultado o nível de propiedade de casa (‘homeownership rate’) caiu – de 69% em 2001 para 64% em 2011 – enquanto arrendamento privado começou a subir, revertendo suas tendências históricas ao longo do século 20. As consequências sociais têm sido sutis, mas profundas. Os jovens ficaram efetivamente bloqueados do mercado imobiliário, e a idade média de um comprador de primeira viagem subiu de 28 para 35 anos em apenas uma década. Enquanto isso, muitas pessoas de baixa renda que não podiam mais acessar a habitação social acabaram no setor de locação privada caro e mal regulamentado.

A resposta dos governos de ‘New Labour’ (1997-2010) a este problema foi, em retrospecto, perversa. Enquanto ‘apertaram’ (‘tightened’) outras partes do sistema de bem estar, eles criaram e ampliaram benefícios para ajudar as pessoas que trabalhavam com rendimentos muito baixos. “Tax credits” introduziram-se para os domicílios com só um ganhador de baixa renda, enquanto o “housing benefit” foi introduzido para ajudar as pessoas que habitavam casas alugadas e cujos rendimentos não eram suficientes para pagar o aluguel. Visto como ferramentas para estimular simultaneamente o emprego e reduzir a pobreza, estas medidas pareciam fazer sentido. No entanto, com o mercado de trabalho altamente liberalizado e o setor de locação privada fracamente regulada do Reino Unido, isso equivalia a um subsídio para empregadores exploradores e senhorios abusivos.

Enquanto os preços dos imóveis e do aluguel subiram, esses pagamentos também cresceram e tornaram-se os maiores gastos do sistema de bem estar (com a exceção das pensões). A mídia de direita dominante e o partido conservador desonestamente reivindicam que esses gastos mostram um problema de desemprego e a ‘dependência’ dos pobres no Estado. O que de fato mostram é que agora apenas o Estado pode superar a diferença crescente entre os baixos salários e os altos custos das moradias.

Nova crise, antigos problemas

Isso nos leva a 2008, e mais especificamente ao governo de coalizão que assumiu o poder depois de uma eleição inconclusiva em 2010. Os partidos Conservador e Democrata Liberal ambos entraram a eleição com manifestos relativamente moderadas, mas ao formarem uma coalizão comprometeram-se a um programa de cortes de gastos públicos que está desmontando muito do que Thatcher e New Labour deixaram do estado de bem estar. As populações pobres e vulneráveis tem sido desproporcionalmente afetadas – a maioria dos pagamentos de benefícios têm diminuído significativamente ou foram retirados, enquanto os serviços públicos essenciais foram dizimados. Uma medida particularmente controversa, conhecido como o “Bedroom Tax” (“Imposto de quarto”), deduz uma multa de recipientes de benefícios com quartos desocupados em suas casas, deixando muitas pessoas vulneráveis efetivamente desabrigadas.

Mas embora o governo tem corroído os apoios estatais que permitem os pobres pagarem o seu aluguel, ao mesmo tem feito tudo o que pode para aumentar os preços imobiliários. O atual governo está entregando o menor número de novas propriedades desde a Segunda Guerra Mundial. Grande parte deste déficit é o resultado da acumulação de terras por incorporadores que temem perder o capital investido na compra de terras antes de 2008 com as atuais previsões inferiores de venda de propriedades. Apesar dessas restrições na oferta, o governo reforçou a demanda com “Help to Buy” (“Ajuda a Comprar”) – um programa que oferece uma garantia do governo para empréstimos a compradores de primeira vez em propriedades médias. Uma vez que a política foi introduzida em outubro do ano passado os preços das casas subiram rapidamente no superaquecido Sudeste da Inglaterra. Muitos observadores interpretam esse aumento como uma bolha insustentável.

Como o “Right to Buy” de Thatcher os motivos para “Help to Buy” são em grande parte políticos. O Partido Conservador, sofrendo nas pesquisas de opinião (opinion polls), calcula que para ter uma chance de ganhar a próxima eleição em 2015 deve ganhar o apoio das famílias de classe média “aspiracionais” que encontram-se excluídas do mercado imobiliário. Mas se o governo atual tem alguma preocupação para famílias jovens de classe média, sua base eleitoral principal continua sendo os proprietários estabelecidos de meia-idade. E para preservar o apoio deste grupo é preciso preservar o valor de suas propriedades. Isso não é puramente uma questão de indulgência, mas também da necessidade – os rendimentos desse grupo estagnaram, as pensões encolheram e eles têm cada vez mais responsabilidade em ajudar seus filhos com seus próprios custos de educação e habitação. Enfim, a política britânica fica presa pela crescente dependência dos grupos favorecidos em suas casas, devido aos impactos das políticas neoliberais em outras partes do sistema.

Os impactos do atual conjunto de políticas têm variações regionais significativas. O Sul (tradicionalmente mais rico) é afetado mais pelos aumentos dos preços imobiliários, e o Norte (onde tem mais pobreza) está sofrendo mais dos cortes dos benefícios. Em todos os lugares o custo de vida tem se apertado. Em Londres, que tem as comunidades mais ricas do país, mas também algumas dos mais pobres, as contradições alcançam seus maiores extremos.

E é em Londres que outra conseqüência bizarra do acordo pós-2008 e da defesa desesperada dos preços imobiliários pelo governo se pode ver. No contexto da incerteza financeira mundial, e devido aos baixos impostos levados sobre compradores de casas estrangeiros, os imóveis mais valorizados da cidade tornaram-se um tipo de ‘moeda de reserva global’. Investidores da Zona Euro, da China, do Oriente Médio e da Rússia, entre outros lugares, identificaram os bairros nobres de Londres como um lugar seguro para estacionar o seu capital até que os mercados globais recuperarem a ‘normalidade’. O resultado é que o mercado imobiliário de Londres passou a operar como nenhum outro do mundo. Os bairros nobres estão sendo despovoados como as propriedades são compradas e deixadas vazias para o maior parte do ano. Enquanto isso, o efeito cascata (ripple effect) está empurrando os moradores de classe média a alugar – em vez de comprar – suas casas, e também a gentrificar os bairros populares a uma taxa muito acelerada. Os pobres, por sua vez, estão sendo empurrados em unidades alugadas caras e super-lotadas, ou até fora da cidade. Na capital da chamada “nação de proprietários” extremos de desigualdades habitacionais que não pareceriam fora de lugar em um romance de Charles Dickens tem retornado.

Parando o vicio?

Os atuais problemas habitacionais do Reino Unido são um desastre de 35 anos na tomada. Suas contradições amarraram diversas vertentes em um nó que agora engloba a grande parte da população e todos os partidos políticos. A única solução possível agora é uma solução radical. O Partido Trabalhista (Labour Party) começou a falar sobre a construção de moradias em grande escala, a imposição de novos impostos nas propriedades ricas e nas compras estrangeiros, de multas grandes para incorporadores que não constroem em terrenos baldios, e a retirada das políticas destrutivas como o “Bedroom Tax”, que estão agravando os problemas de superlotação e o sem abrigo (homelessness). Não é claro se estas diferentes propostas são viáveis ou suficientes, mas pelo menos a questão parece ter chegado na agenda política. A menos que nós queremos a habitação ainda mais cara e de pior qualidade, e as cidades ainda mais desiguais e segregadas, ‘mais do mesmo’ não é uma opção.

 

Fonte: Observatório das Metrópoles

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