(Português) Quilombolas disputam terra com Marinha na Bahia

(Português) 04 de dezembro de 2013

Conexão mais viva com o passado da escravidão, as comunidades quilombolas tiveram o direito à titulação de terras estabelecido pela Constituição de 1988 – e regulamentado por um decreto dez anos atrás.

Mas o caminho para obterem títulos de propriedade é lento e tortuoso.

De acordo com a Fundação Cultural Palmares, mais de 1.200 quilombos têm processos abertos reivindicando a terra onde seus antepassados se instalaram, escravos fugidos ou libertos. Apenas 207 já obtiveram o reconhecimento.

Muitas enfrentam disputas de terra com donos de fazendas, empresas – ou mesmo com o próprio Estado.

É o caso de Rio dos Macacos, na Bahia, palco de um dos conflitos de terra mais emblemáticos vividos por quilombolas.

As cerca de 67 famílias da comunidade disputam suas terras com a Marinha brasileira – e vivem com os nervos à flor da pele, temendo o despejo e denunciando casos de violência e intimidação.

Problema com a Marinha

Aqui, os mais velhos dizem que seus antepassados foram trazidos para trabalhar em uma fazenda de cana de açúcar, há mais de 200 anos.

«A comunidade era boa. Todo mundo criava, todo mundo plantava, a gente pescava e vivia da roça», diz Maria de Souza Oliveira, de 86 anos. «Mas depois a Marinha chegou e começou a botar todo mundo para fora.»

A Marinha chegou ao local nos anos 1950 e estabeleceu a Base Naval de Aratu, hoje a segunda maior do Brasil. Uma vila naval foi construída ao lado da comunidade e hoje abriga mais de 400 famílias.

Dona Maria diz que dezenas de famílias foram expulsas nos anos 1970 para dar lugar à vila. Sua casa é uma das únicas que permaneceram em um dos lados do terreno, separada do restante do quilombo pela vila militar.

A Marinha começou a pedir a reintegração de posse da área em 2009, iniciando uma disputa jurídica e fazendo a comunidade se mobilizar por seus direitos.

Antônio Lessa, chefe de gabinete do Ministério da Defesa, diz que a área tem grande importância estratégica para a Marinha brasileira, que precisa expandir suas operações.

O plano é aumentar a vila naval e criar um centro de treinamento para fuzileiros navais.

Lessa diz que a Marinha venceu as três ações de reintegração de posse que apresentou à Justiça. Mas a ordem de despejo não foi cumprida, e ele afirma que nem será.

«Temos a intenção de que eles continuem na área. O interesse do Ministério da Defesa é fazer um acordo com a comunidade e resolver a questão da terra. Fizemos uma proposta e agora estamos esperando uma contraproposta», diz ele.

‘Intimidação’

O governo ofereceu 28 hectares de terra à comunidade. Mas um relatório do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), concluiu que eles têm direito a 301 hectares – mais de 10 vezes além do proposto.

O relatório é o primeiro passo do processo para que comunidades quilombolas pleiteiem a titulação de terras.

Ele foi estabelecido pelo decreto 4.887, publicado em 20 de novembro de 2003 – 15 anos após a Constituição estabelecer que o estado deveria conceder títulos de propriedade a comunidades quilombolas.

Mas no caso de Rio dos Macacos, o relatório nunca foi publicado no Diário Oficial, e o caso foi levado para Brasília.

Enquanto a situação não se resolve, moradores da comunidade dizem estar sendo intimidados por fuzileiros navais – e impedidos de plantar.

«A gente plantava aipim, feijão, cana de açúcar, abóbora. Agora tudo que a gente planta, a Marinha arranca», diz Crispiniana Evangelista, que tem 10 filhos, cinco netos e diz só conseguir alimentar a família «no sufoco».

«Dia tem para comer, dia não tem», afirma.

Segundo Lessa, as denúncias recebidas foram apuradas, mas não foram encontrados indícios de violência. Ele reconhece que há uma sobreposição de interesses em relação à terra.

«De um lado, temos os interesses públicos da Marinha de manter a área, e de outro, os interesses públicos do Estado de dar uma solução para aquelas famílias, para que possam ter uma vida digna e acesso a serviços públicos. É o que estamos tentando conciliar», diz.

Uma das líderes da comunidade, Rosimeire dos Santos Silva, diz que a situação está «muito difícil».

«Eles querem que a gente negocie, mas não dá para tirar o sustento da terra que estão oferecendo. A gente já perdeu tanto que você nem imagina.»

Ela diz que a comunidade perdeu grande parte do território com a construção da vila naval, de uma barragem no Rio dos Macacos e dos quilômetros de muro que cercam o terreno.

«A gente está espremido e agora o governo quer reduzir ainda mais.»

Contraste

Rosimeire afirma ainda que a comunidade está sendo pressionada a aceitar a oferta para que possa ter acesso a serviços básicos e programas sociais. O quilombo não tem saneamento básico, eletricidade nem escolas. Como a maioria dos moradores, Rosimeire não saber ler nem escrever.

É um grande contraste com a vila naval do outro lado do Rio dos Macacos, com casas brancas, grama cortada e ruas de paralelepípedo. A vila tem um ambulatório e uma igreja – que, segundo ela, a comunidade não pode frequentar.

Mesmo para entrar e sair da comunidade existe dificuldade. O acesso principal é pela vila naval, sujeito ao controle da Marinha, e Rosimeire diz que os moradores têm seu direito de ir e vir cerceado.

Vice-presidente do Conselho do Desenvolvimento da Comunidade Negra, a socióloga Vilma Reis vem acompanhando a luta de Rio dos Macacos há quase três anos.

Ela diz que as comunidades quilombolas estão descobrindo sua própria voz e lutando por seus direitos – mas enfrentam a resistência de elites que têm influência e poder político a seu favor.

«Essa é uma questão de reparação moral. A comunidades quilombolas nos forçam a lembrar que o Brasil tem uma dívida com a população negra», diz.

«Essas comunidades guardam as nossas memórias mais delicadas. Elas estão nos dizendo: ‘Enquanto não houver reparação, nós não vamos sair do meio da estrada’.»

 

Fonte: Terra Noticias

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