Especulação quer comunidade do Horto fora do Jardim Botânico

07 de março de 2013

por Sheila Jacob, do Rio de Janeiro (RJ)

Jovem de 17 anos conta, em livro, versão dos moradores da comunidade do Horto Florestal e sua resistência para não serem removidos. “Até de ratos nós somos chamados. Esse livro parte de um preconceito que sofremos dia a dia para mostrar que não somos nada disso”. Foto: Sheila Jacob

No final de 2012, chegou a algumas livrarias do Rio de Janeiro e bancas do Jardim Botânico o “Diário de uma invasora”. Nele, a autora, uma menina de 17 anos, expõe a versão dos moradores da comunidade do Horto sobre as ameaças de remoção que vêm sofrendo nos últimos anos.

Com linguagem simples, objetiva e ao mesmo tempo encantadora, “Flávia”, pseudônimo da autora do livro “Diário de uma invasora”, responde aos ataques disparados contra os moradores do Horto, chamados de invasores pela vizinhança endinheirada. A idade e o tamanho de Flávia enganam: quem a vê tão jovem, não imagina a coragem e a determinação que tem. A ideia de escrever o livro veio de um episódio inusitado: um encontro, em meados de 2012, com Aspásia Camargo, então candidata a prefeita do Rio pelo PV. “Fiquei tão indignada que decidi não chorar mais e contar a outra versão dessa história do Horto. Seria um jeito de dar voz a quem não tem espaço na maioria dos meios de comunicação”, explica a autora em entrevista na Livraria Antonio Gramsci, onde também está sendo vendido o livro.

Interesses em disputa na região

O encontro entre as duas ocorreu logo após um “abraço simbólico” organizado em julho de 2012 pela Associação de Moradores e Amigos do Jardim Botânico (AMA-JB), entidade que quer retirar os moradores do Horto. Flavia relata que foi falar pessoalmente com Aspásia e disse achar muito errado quererem expulsar pessoas de suas casas por causa de interesses financeiros. “Foi horrível! Para me ‘convencer’, ela chegou a dizer que tinha se mudado várias vezes da casa dela. Também disse que não entendia como a gente podia ser pobre e ter dinheiro pra pagar o carro de som usado no ato organizado pela nossa associação de moradores. Eu sei a dificuldade que a gente tem para conseguir as coisas! Tudo é muito difícil lá na comunidade, ela não conhece nossa realidade e por isso não tinha direito de falar aquilo”, relata a jovem.

Ela lembra que foi abraçada pela candidata. “Ela fez aquilo para mostrar para todo mundo que tinha me convencido. Estava atrasada, fui chorando para a escola e então eu resolvi que não podia mais ficar calada”, conta Flávia. Na ocasião, o vice da chapa de Aspásia era Alfredo Piragibe, que já havia sido presidente da AMA-JB.

Até de ratos nós somos chamados

A indignação fez Flavia recolher alguns escritos já produzidos e elaborar outros sobre a sua realidade, tão manipulada e desconhecida por quem está acostumado a ler a imprensa carioca e assistir aos telejornais. Esse episódio é um dos tantos que compõem o seu Diário de uma invasora. O título, pensado a partir de um estereótipo, faz referência aos ataques que os moradores vêm sofrendo constantemente. Ao contrário do que podem pensar os mais ingênuos, ao longo das páginas a ideia de invasão é desfeita. “Até de ratos nós somos chamados. Esse livro parte de um preconceito que sofremos dia a dia para mostrar que não somos nada disso”, ressalta.

Ataques aos moradores vêm desde a década de 1970

A história da família de Flávia se confunde com a de muitos moradores do Horto: ela faz parte da quinta geração de uma família de trabalhadores que foram para lá quando o local estava completamente abandonado. “A ocupação do local vem desde o tempo de Dom João VI, quando os escravos que eram chamados para trabalhar na própria construção do Jardim Botânico e na Fábrica de Pólvora foram ficando ali. Há traços disso em vários lugares. Depois vieram os trabalhadores e eles tiveram que ficar, pois não havia transporte público suficiente, o local era extremamente abandonado. Foram várias gerações de gente que trabalhava tanto no Jardim Botânico quanto em outros órgãos públicos que ficavam no mesmo local, já que aquele é um grande espaço da União: IBDF, Ibama, CEDAE…” conta Moacyr, também morador do Horto e responsável pela edição do livro.

Os ataques aos moradores do Horto começaram na década de 1970, principalmente após a valorização da região e a instalação da Rede Globo logo ali. A área, antes abandonada, agora é nobre, faz parte da Zona Sul do Rio. Assim como outras comunidades da cidade, também ameaçadas de remoção, o Horto virou alvo da especulação imobiliária. “A real é que a comunidade do Horto, com suas casinhas humildes, atrapalha a valorização dos imóveis dos grandes proprietários do Jardim Botânico, inclusive e principalmente a Rede Globo” – observa Flávia em seu Diário.

Processo de regularização fundiária é interrompido

No início de 2010, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e a Faculdade de Urbanismo da UFRJ começaram um processo de regularização fundiária que, conforme prevê a lei, garantiria a função social daquela terra. Esse trabalho foi interrompido após a AMA-JB interpelar o Tribunal de Contas da União (TCU), que, em 2012, fixou um prazo para a expulsão das famílias do Horto. Se não estivesse parado, hoje os moradores já estariam com os títulos de ocupação do terreno. De acordo com o estudo, as casas que estão em áreas de risco poderiam ser remanejadas dentro da própria área do Horto. A Advocacia Geral da União (AGU) entrou na época com um recurso para suspender a decisão do TCU. No momento, o caso está parado no Supremo Tribunal Federal (STF). “O nosso principal desafio é disputar a opinião pública, porque quem lê jornal pensa que o Jornal Botânico está ameaçado e que as 600 famílias estão ali dentro do parque! Isso é uma mentira”, avalia Moacyr.

A jovem moradora concorda. Ela lembra que o secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente, Francisco Gaetani, durante uma reunião chegou a pedir aos moradores para parar de ler os jornais, pois estavam fazendo um verdadeiro massacre ideológico contra aquela população. O avô de Flávia contou que teve até morador que morreu de infarto após saber que podia perder sua casa. E ela ainda questiona: “Se o interesse do atual administrador do Jardim Botânico, Lizst Vieira, é preservar o parque, como se explica a construção de estacionamentos e casas de show ali dentro?”

Um livro militante

Esse e outros questionamentos estão no livro. Dos mil exemplares publicados, alguns foram distribuídos para autoridades e moradores. A escritora conta que alguns vizinhos que leem no relato de Flávia as suas próprias histórias de vida estão, por iniciativa de uma menina, conseguindo voltar a ter esperanças.

 

Fonte: Brasil de Fato

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