Peru: depois do terremoto, o descaso

05 de setembro de 2012

Comissão de investigação parlamentar alega que políticos e empresários teriam sido beneficiados com reconstrução das cidades, 5 anos após maior abalo sísmico peruano

por Marcio Zonta, de Pisco (Peru)

Estima-se que 180 mil moradores de Pisco (foto), Ica e Chincha precisam reconstruir suas casas. Foto: Jocelyn Lance EU/ECHO

Cinco anos depois do terremoto que atingiu o sul do Peru, em 15 de agosto de 2007, tendo seu epicentro nas províncias de Ica, Pisco e Chincha, contabilizando 597 mortes e 2291 mil feridos na região, a maioria dos sobreviventes do desastre natural ainda padece de amparo governamental para reerguer suas casas e vidas.

Sem resolução do governo, o desastre virou amargor permanente para muitas famílias e um negócio lucrativo para empresários do ramo da construção, especulação imobiliária e bancos que oferecem financiamento para reconstrução e compra de imóveis.

Conforme a comissão de investigação parlamentar instaurada para apurar o motivo da demora da reconstrução das casas danificadas das famílias, bem como o estado em que vivem atualmente, há suspeitas sobre alguns governantes das províncias e ministros, à época do abalo sísmico e alguns atuais, de pertencerem a um esquema de corrupção e desvio de verbas destinadas à reconstrução das moradias.

A reportagem do Brasil de Fato viajou até a localidade, cujo cenário ainda presente em certas comunidades, como em Tambo de Mora, dá a impressão de que o terremoto aconteceu há poucos dias, dado o grau de destruição que perdura até os dias atuais.

Em outros locais, como o El Molino, um terreno onde centenas de famílias foram abrigadas provisoriamente depois do terremoto, hoje virou um grande amontoado de barracos sem água potável ou tratamento de esgoto, ficando como única solução de moradia para os desabrigados.

“Pouca coisa foi reformada ou construída até hoje em Pisco, estamos abandonados”, revolta-se Gonzales Ramirez, morador que vive em sua casa improvisada entre a lona que serve como teto, as madeiras como viga de sustento dessa estrutura e as poucas paredes que restaram dos cômodos após o sismo.

Segundo o Ministério de Habitação e Construção, o número oficial de atingidos é de 27.660 famílias. Aproximadamente 180 mil pessoas das três cidades necessitam de uma casa.

Corrupção

Diante da necessidade de uma solução rápida aos desabrigados de Ica, Pisco e Chincha, o então presidente da época, Alan Garcia, prometeu às famílias um valor em dinheiro, 2,3 mil dólares, para a reconstrução de suas casas.

No entanto, só na cidade de Ica, 28 mil pessoas receberam o valor oferecido pelo governo, restando até hoje 33 mil habitantes na província sem o valor prometido pelo governo.

“Recebi o cartão para sacar meu abono em dinheiro e só consegui parte do dinheiro há quatro anos, nas outras tentativas sempre deu falta de fundos”, reclama o pescador Fernando Felipa Miñan, que vive num barraco de madeira de 6 metros de largura e três de altura no mesmo lugar onde era sua casa.

O presidente da comissão de investigação parlamentar, Rogelio Canches, acusa que um montante desse dinheiro teria sumido. “Estamos investigando onde parte do dinheiro que contemplaria o restante das 33 mil pessoas, aproximadamente 80 milhões de dólares, foi parar. Há possibilidade de ter sido empregada em outras construções, mas as autoridades locais ainda não provaram isso”.

A investigação de Canches delata que pessoas que não nasceram em Pisco e tampouco habitavam na cidade quando aconteceu o terremoto, teriam tido acesso aos cartões para o saque do benefício. “Há uma série de irregularidades muito graves neste processo, por exemplo, não posso adiantar os nomes das pessoas que teriam tido acesso a esse dinheiro sem necessidade, mas já sabemos que isso aconteceu, e vamos informar mais detalhes futuramente”, assegura o presidente da comissão.

Canches revela que tanto as prefeituras de Pisco como de Chincha se negaram a entregar arquivos e documentos que têm conteúdo sobre o avanço das obras de reconstrução. “Em Pisco, me disseram que não possuem nenhuma documentação, já que teria sido perdida em um incêndio”.

Há cidades nas quais, juntamente com Lima, a comissão de investigação parlamentar já descobriu seis obras de reconstrução realizadas com graves indícios de corrupção.

“Só em quatro obras, sem contar as mais de novecentas que foram executadas até o momento, constatamos um subfaturamento de 960 mil dólares em cada uma”, afirma Canches.

Nesse sentido, o presidente da comissão de investigação deixa claro: “Se os prefeitos de Chincha e Pisco não colaborarem com a investigação por bem, serão obrigados pela justiça a colaborar na marra”.

Acuado, o prefeito de Pisco, Jesús Echegaray Nieto, justificou que a demora da reconstrução das casas é pelo fato de que parte das habitações da cidade, 40%, não conta com registros de títulos de propriedade.

“Sem os documentos, os mais afetados não podem ter acesso a créditos do governo para construir novas casas”, alega Nieto.

Argumentação que irrita o presidente da Frente de Defesa dos Interesses da Região de Ica, Victor Paco Acasiste. “O que tem freado a reconstrução de certas áreas afetadas é a corrupção e o populismo das autoridades políticas envolvidas, até mesmo a titulação das propriedades está sendo emperrada pelo próprio município, sem contar com os serviços de educação e saúde que é pífio ainda”, define.

Negócio

É justamente num contexto de necessidades que novos atores entraram em ação depois de 15 de agosto de 2007.

“Muitos bancos foram beneficiados, já que o governo colocou à disposição das famílias afetadas programas sociais de moradia e construção, cujos principais financiadores são os bancos nacionais e internacionais que operam no país”, alega José Perez do Movimento Sem Teto de Lima.

O governo repassou aos bancos cerca de 40 bilhões de dólares para financiar tais programas, segundo dados do Ministério de Habitação e Construção.

Dois meses depois do forte abalo sísmico, o governo de Garcia eliminou todos os impostos sobre o cimento importado, com a desculpa de que o cimento produzido no Peru não seria suficiente para as obras de reconstrução das cidades.

A principal beneficiada com esse decreto do Executivo peruano foi a poderosa empresa de fabricação de cimento mexicana, Cemex.

Os rumores na época apontavam que o ministro de saúde de Garcia, Hernán Garrido Leca, seria o responsável por fomentar a ideia no palácio presidencial de eliminar os impostos sobre o cimento importado, por seu envolvimento com empresários mexicanos e por ser um dos entusiastas que levou à incursão do banco mexicano Azteca a operar no Peru.

Colocado sob suspeita, Garrido começou a ser investigado sigilosamente por uma empresa de espionagem contratada pelo círculo de industriais peruanos do ramo da construção, que se sentiram traídos com a entrada facilitada dos negócios da Cemex no país.

Em meio à investigação que veio a conhecimento geral, foi descoberto que Garrido tinha vínculos com o empresário peruano Fortunato Canaán, interessado em aproveitar a influência do ministro da saúde para ganhar licitações de reconstrução de hospitais nas cidades afetadas.

Conforme publicado no jornal La Republica, em uma das edições de agosto, na coluna do jornalista Marcos Sifuente, nada mais foi informado sobre os negócios envolvendo Garrido e os interesses empresariais na reconstrução das cidades atingidas pelo terremoto de 2007, e muito do que foi descoberto e levado à justiça no Peru, estranhamente sumiu, pairando um silêncio sobre o caso.

Enquanto isso…

Poucas famílias vitimadas pelo terremoto de 2007 conseguiram reerguer suas casas. Muitas delas passaram a viver em abrigos que seriam provisórios e se tornaram moradias fixas em lugares totalmente insalubres.

O senhor Maribel Toledo Yunga descreve as dificuldades de viver no abrigo Beatita de Humay localizado nos arredores da cidade de Pisco. “Sofremos com a infiltração de água nesses barracos, não temos saneamento básico e a água potável só se formos buscar em outros lugares ou comprar”.

Sua esposa, Yana Toledo afirma que depois do incidente, nenhuma instituição do Estado apoiou as famílias como deveria, “nos colocaram aqui e essa foi a solução, nada mais foi feito”.

A filha de Yana, que prefere não se identificar, é um dos casos mais emblemáticos do abrigo. Pela tensão no exato momento do terremoto, que durou cerca de três minutos, a jovem entrou em trabalho de parto e deu à luz a um menino prematuro com sete meses de gestação.

Em meio ao caos que virou a cidade, o atendimento médico foi precário e a única instrução pediátrica era que o pequeno Javier, hoje com cinco anos, tomasse um leite especial.

“De que forma achar o leite necessário numa cidade praticamente destruída?”, indaga Yana. Sem leite materno, pela debilidade da saúde da mãe, Javier foi alimentado nos primeiros dias com leite extraído da cachorra de estimação da família que havia procriado por aqueles dias.

Histórias piores ou iguais se repetem pelos abrigos provisórios. Em El Molino a senhora Eulalia Bendazú, com 72 anos de idade, padece com um tumor na barriga e cuida sozinha de um dos seus filhos que sofre de mal de Parkinson sem nenhuma assistência governamental. “Vivemos hoje num lugar sem condições para que eu e meu filho possamos frequentar um médico pelo acesso ou condições mínimas de qualidade de vida”, desabafa.

O funcionário da prefeitura, Francisco Cartagena Lache, reconhece que nos abrigos improvisados para as famílias que tiveram suas casas totalmente danificadas pelo terremoto, o abastecimento de água é precário. “Realmente em alguns dias da semana existe escassez de água e nos outros temos, mas não com tanta abundância”.

Para Victor, da Frente de Defesa de Ica, que assiste diariamente a problemática das famílias, “as vítimas desse desastre natural exigem habitação digna e o direito da reconstrução integral e efetiva depois de cinco anos de sofrimento”, clama.

Até o momento, somente 1,342 mil famílias atingidas pelo terremoto conseguiram reconstruir suas casas nas três províncias mais afetadas.

 

Fonte: Brasil de Fato

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