Lei da Copa: um “chute” nos direitos humanos

31 de maio de 2012

Com o argumento de que a Copa do Mundo não pode esperar, a FIFA chuta para escanteio a legislação vigente e ignora direitos básicos da população.

por Isadora Spadoni

Mesmo antes de ser sancionada pela presidente Dilma Rousseff, a Lei Geral da Copa já mostra ao Brasil para quê veio: dar um “chute no traseiro” da Constituição Federal e dos direitos básicos da população e impor situação semelhante à de guerra ou calamidade pública: o Estado de exceção, dispositivo legal do Estado que suprime os limites de sua atuação é, segundo o influente pensador da contemporaneidade Giorgio Agamben, “a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”.

Apesar de também “apagar um incêndio por vez”, o Projeto da Lei Geral da Copa rende reflexões. Para Inácio José Werner, membro do Comitê Popular da Copa em Cuiabá, que se reúne mensalmente no Fórum Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso (FDHT-MT), o que chama atenção é a forma como a Lei Geral passa em cima da legislação em aspectos fundamentais para a população e não se preocupa em dialogar com a mesma.

“A exemplo da vigilância massiva, que não faz parte da cultura nacional, o controle à venda de outras bebidas que não as de marcas patrocinadoras e o cerceamento do livre acesso em alguns pontos”, argumenta Inácio. “As obras, que antes respeitavam um trâmite, agora podem ser feitas de qualquer maneira. Se houver desvios, eles só serão revelados no futuro, ou talvez nunca”, pontua o membro.

“No afã de sediar o Mundial, nossos governantes não mediram esforços e nem se deram ao trabalho de ler a Carta de Compromissos imposta pela FIFA”. Quem diz é o apresentador de TV e ex-prefeito de Cuiabá por dois mandatos, Roberto França. Segundo ele, é a FIFA que impõe as regras da Copa e fica a critério do país aceitar ou não. “O Governo Federal e o Governo do Estado não podem nem questionar, pois assinaram a Carta. Eles deveriam ler com mais atenção um documento antes de assinar”, finaliza.

Com o argumento de que a Copa do Mundo não pode esperar, consentido pelo orgulho nacional e a paixão nata pelo futebol, a Fédération Internacional de Football Association (FIFA), empresa de interesses privados impõe, com extravagância e urgência semelhantes à do estado de sítio, uma suspensão da legislação em vigor, antes e durante a realização dos jogos. Mesmo que temporária, a intervenção traz danos irreparáveis aos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais.

Entre os casos está o Regime Diferenciado de Contratação (RDC), regulação específica que afasta a incidência da Lei de Licitações e possibilita que obras públicas sejam feitas “sem burocracia” para que sejam concluídas a tempo; o abuso das relações de consumo, com a venda casada de ingressos para os jogos e a anulação do Estatuto do Torcedor, ao permitir que bebidas alcoólicas sejam comercializadas durante as partidas, além do direito básico à moradia, que já é penalizado com as desapropriações massivas.

Um incêndio por vez

Para o Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo em Mato Grosso (IBEDEC-MT), principal assessoria aos penalizados, a Lei Geral da Copa já reflete em prejuízos para o transporte coletivo, o acesso ao comércio, a desapropriação e a falta de diálogo com a população. No entanto, o assessor jurídico do IBEDEC-MT, Antônio Carlos Tavares de Mello reconhece que alguns pontos da Lei ainda não receberam a devida atenção de órgãos competentes e autoridades políticas. “Sabemos que a Lei interfere nas relações de consumo e apresenta muitos vícios e abusos, que confrontam com a nossa lei, mas pouco, ou nada, é dito sobre isso.

Todo mundo está apagando um incêndio por vez”. Ele explica que o IBEDEC nacional prepara uma lista de propostas de mudanças ao Projeto que, se ignoradas, devem evoluir para uma ação civil pública. “Os Estados Unidos e alguns países da Europa, ao sediarem o Mundial, não aceitaram algumas cláusulas impostas pela FIFA. No Brasil, a discussão gira em torno apenas na venda de bebidas nos estádios, um grande lobby das marcas patrocinadoras, e ignora alguns direitos básicos da população”, aponta.

Pontos críticos do Projeto

Já no segundo capítulo do Projeto, que trata sobre a Proteção e Exploração de Direitos Comerciais, a FIFA veda um artigo da Lei nº 9279, de 1996, que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial e registra, junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), marcas, emblemas e demais “símbolos oficiais” da Federação, sem definir o termo “símbolos oficiais”, o que pode abranger qualquer imagem, ideia ou expressão linguística que evoque “Copa”, “Copa do Mundo”, “2014”.

Além de ser dispensada do pagamento de qualquer procedimento no âmbito do INPI (seção I, artigo 10), a FIFA penaliza a utilização indevida dos “símbolos oficiais” com detenção, de três meses a um ano, ou multa. (seção IV, artigo 16). Estão inclusos nesse caso qualquer estabelecimento – ou ambulante – que utilizar os símbolos oficiais para caracterização, bem como iniciativas particulares que não visam lucro: quem pintar o muro de casa com a frase “Copa 2014” ou usar uma camiseta que não é a oficial está sujeito às penalidades citadas.

Quando o assunto são as áreas de restrição comercial e vias de acesso (seção II), a FIFA deixa clara a proibição da divulgação, distribuição, venda, propaganda ou qualquer outra atividade promocional ou de comércio de rua nos Locais Oficiais de Competição, suas imediações e principais vias de acesso. A restrição fere o direito de ir e vir e a livre-iniciativa.

Na seção III, que dispõe sobre a Captação de Imagem ou Som, Radiodifusão e Acesso aos Locais Oficiais de Competição, a FIFA “é a titular exclusiva de todos os direitos relacionados às imagens, sons e outras formas de expressão dos Eventos, incluindo o de explorar, negociar, autorizar e proibir transmissões ou retransmissões”. Sendo assim, a FIFA pode impedir a presença da imprensa e penalizar estabelecimentos comerciais que estiverem retransmitindo as partidas do Mundial.
O preço dos ingressos, disposto no capítulo V do Projeto, é determinado pela FIFA, que pode modificar datas, horários ou locais de Eventos, desde que seja concedido o direito ao reembolso; e a venda de ingressos avulsos ou conjuntamente com pacotes turísticos ou de hospitalidade – a famosa “venda casada”,  é proibida pelo Código de Defesa do Consumidor.

No capítulo que refere à Responsabilidade Civil, a FIFA determina seguros para a cobertura de riscos durante o Mundial e impõe sobre a União a responsabilidade de qualquer dano, incidente ou acidente de segurança relacionado ao megaevento. O artigo, abrangente, dá brechas para qualquer eventualidade que prejudique a Copa do Mundo e implica mais endividamento, uma vez que as indenizações serão pagas com verbas públicas.

Mobilização nacional

Insatisfeitos com as violações de direitos fundamentais, o endividamento público e a brecha para irregularidades, os Comitês Populares da Copa publicaram, às vésperas da votação da Lei Geral, uma carta aberta a parlamentares, pedindo que a legislação seja vetada. Na carta, as cidades sub-sedes mostraram o lado obscuro da Copa do Mundo: “Ela [a Lei Geral] é ilegítima, porque, baseada meramente em contratos estabelecidos entre o Brasil e uma entidade privada, tem pouco ou nada a ver com o atendimento do interesse público”, diz um trecho da carta.

 

Fonte: Circuito Mato Grosso

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