A edição nº 52 da Revista Adusp (publicação da Associação de Docentes da USP) traz uma entrevista com a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e Relatora Especial da ONU para o direito à moradia, Raquel Rolnik. O tema da entrevista são os impactos da realização de megaeventos esportivos no país. Confira abaixo.
“Coisas nada civilizadas ocorrem quando um país prepara um megavento”
“Um megaevento é uma situação paralisante do ponto de vista político, especialmente a Copa do Mundo, porque, em se tratando de futebol, mobiliza-se um elemento cultural fortíssimo na cultura brasileira. Nós amamos o futebol: sofremos, sentimos, faz parte da alma brasileira. Em seu nome, vale tudo. Constitui-se um verdadeiro Estado de Exceção, um Estado de Emergência, onde direitos acabam não acontecendo”. A autora do comentário é a professora Raquel Rolnik, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e relatora, na Organização das Nações Unidas (ONU), do direito à moradia adequada.
Responsável por um relatório temático sobre o impacto dos megaeventos, nesta entrevista Raquel descreve incisivamente como são decididas, no Brasil, as transformações urbanas que já vêm afetando negativamente as condições de moradia de milhares de pessoas de baixa renda: “As operações da Copa não passam pelo Ministério das Cidades. O processo decisório ocorre nos gabinetes de prefeitos e governadores envolvidos, e na rede empresarial envolvida na viabilização desses empreendimentos. Os projetos com os quais o governo federal está envolvido são os projetos de mobilidade — e o BNDES financia a construção dos estádios. Mas não há nenhuma instânciano governo federal, participativa ou aberta, onde isso tenha sido debatido”.
A democracia desapareceu nesse contexto, acusa a professora da FAU: “Onde estão as instâncias que foram criadas — como os conselhos de cidades, os conselhos gestores de habitação, o conselho nacional da cidade — num processo de institucionalização da democracia participativa no país? Em lugar nenhum. Estão absolutamente à margem disso. O processo decisório passa pelos players diretamente envolvidos na questão, no caso, os comitês organizadores da Copa; a Fifa, que traz o conjunto de interesses empresariais dos patrocinadores fechados com essa instituição privada; o poder político local — o prefeito, o governador, o comitê organizador local e os fornecedores locais”. Em suma, o capital privado dita as regras, com total anuência das estruturas de governo.
O panorama é desolador, todavia “existe vida inteligente nesse país”. Raquel acredita que o movimento de resistência ao rolo compressor da Copa 2014 “está começando e tende a crescer”. A entrevista foi concedida a Pedro Estevam da Rocha Pomar e as imagens são do repórter-fotográfico Daniel Garcia.
Revista Adusp. Geralmente o advento dos grandes eventos esportivosnos países de Terceiro Mundo é apresentado como uma possibilidade de acesso a um patamar civilizatório, ou algo desta dimensão. O que pensa a respeito disso?
RAQUEL ROLNIK. É importante colocar essas iniciativas no âmbito do contexto da evolução histórica delas. Eu tive a oportunidade, como relatora do direito à moradia adequada da ONU, de fazer um relatório temático sobre megaeventos e o direito à moradia, e apresentei em 2010, no Conselhode Direitos Humanos. Foi aí que fui estudar como a organização de megaeventos intervém na questão do direito à moradia, exatamente porque, como relatora, eu comecei a receber muita denúncia de violação do direito humano à moradia adequada no âmbito da preparação das cidades e dos países para sediar eventos como esse.
Ao longo de todo o período da Guerra Fria, esses eventos eram operações conduzidas integralmente pelos Estados — financiadas pelo dinheiro público, produzidas no âmbito público-estatal — e tiveram significado geopolítico importante durante a Guerra Fria no sentido de medir forças entre o bloco capitalista e o socialista, Estados Unidos e União Soviética, quem era capaz de ganhar os jogos, ter os melhores atletas etc.
As Olimpíadas de Los Angeles marcaram, pela primeira vez, a entrada do capital corporativo e da iniciativa privada no processo de montagem e estruturação dos jogos. Ou seja, naquele momento, em Los Angeles, entra o que mais tarde se consolidou como regra que é a idéia do patrocinador, do sponsor, daquela empresa privada que entra inicialmente como suporte para a organização dos jogos e que, progressivamente, ao longo desse período, vai tomando cada vez mais conta desses jogos no sentido de que, para além da questão da disputa esportiva entre as equipes, entra-se cada vez mais no capital privado. O capital privadovai saindo cada vez mais do Estado na condução desse processo. Muda o protagonismo e ao se mudar o protagonismo muda-se o sentido do que se trata um megaevento.
Com Barcelona, nos anos 1990, a gente vai acrescentar um novo componente, que é a operação de transformação urbanística vinculada aosjogos. O que muda nesse momento? A gente já tem um megaevento como um grande stand de vendas de um produto de uma empresa global, multinacional, na luta pela conquista dos seus mercados; e também, no contexto em que vivemos os anos de hegemonia neoliberal, as cidades, os governos locais, vão perdendo a capacidade de investimento na produção da cidade e vão usar a operação de mobilização de capitais ligados à preparação da cidade para os jogos para reposicionar a cidade frente a outra cidade do mundo, como local capaz de atrair investimentos imobiliários e investimentos na própria transformação da cidade. Então esse paradigma vai se acrescentar ao anterior e vai se constituir no novo paradigma.
É nesse momento que começam a entrar no jogo os chamados países emergentes, no momento em que as suas economias passam a ser extremamente significativas, leia-se: o seu mercado passa a ser bastante significativo. Não é por acaso que a China vai fazer as Olimpíadas de Beijing, a África do Sul a Copa do Mundo, Dheli vai fazer os Commonwealth Games e o Brasil a Copa do Mundo e as Olimpíadas; a Rússia é o próximo. Então, é exatamente o momento em que é teste não para a etapa civilizatória, mas sim teste para ser um player global nos circuitos mercantis e financeiros internacionais. Coisas nada civilizadas ocorrem quando um país se prepara para esse tipo de evento, no campo dos direitos humanos. O processo civilizatório significaria, entre outras coisas, o fortalecimento da proteção dos direitos humanos e não uma desmontagem.
Leia a entrevista completa aqui.
Fonte: Revista Adusp
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